terça-feira, 17 de julho de 2018

A Ascensão Feminina

Em Macbeth, Shakeaspere constrói um caminho antes de chegar à morte do rei Duncan, e este caminho é traçado muito baseado na esposa do nobre escocês Macbeth, a Lady Macbeth. Esta personagem é o retrato da mulher da cultura celta: forte, imponente e de equivalência com o homem. Para quem nunca leu a obra shakespeariana, a indicação está feita. Outras culturas, como a chilena pré-colombiana, a japonesa pré-budismo, entre outras, são representações de sociedades matriarcais.

O mundo, de tempos remotos para cá, segue, diferentemente de épocas passadas, numa sequência patriarcal. Isso, como resta evidente, aos poucos tem sido vencido. Como toda mudança madura, ela tem de ser construída, conquistada, do contrário será uma transformação líquida, talvez efêmera.

O Brasil herdou uma cultura do patriarcalismo de países islâmicos, ibéricos, dos escravos africanos, dos próprios índios, e a exemplo de outras partes do globo tem tido esta realidade transformada, e muitas vezes tem sido até pioneiro em algumas mudanças. Essa transformação ocorrente no Brasil deve-se, principalmente, aos tupis-guaranis, que diferentemente de outras tribos, valorizavam o papel da mulher. Mesmo diante de sua derrota para os europeus na famigerada guerra guaranítica, a cultura tupi-guarani permanece viva país afora. O feminismo, muito exaltado no pós-modernismo, teve e tem sua força, mas não vou aqui superestimá-la, já que muitas das principais conquistas da mulher no país foram obtidas antes mesmo de sua ascensão.

Diferentemente de países desenvolvidos, como EUA, Inglaterra e a maioria dos países do hemisfério norte, o Brasil tem lei de equiparação salarial entre homens e mulheres. É preciso lembrar, ainda, que há alguns anos, precisamente em 2014, no governo Dilma, o então deputado federal Valtenir Pereira, do PROS de Mato Grosso, propôs uma lei de multa para a empresa que pagasse menos à mulher que ao homem quando ambos tivessem a mesma função. Essa proposta mostrava ou má-fé por parte do deputado ou desconhecimento da lei vigente. Pelo bem da nação a proposta não teve êxito. Caso a nova lei tivesse entrado em vigor, a empresa pagaria uma pequena multa, de cinco vezes a diferença do salário, e continuaria a manter o ordenado da mulher abaixo da remuneração do homem, quando atualmente já é terminantemente proibida tal discrepância. Se a média do salário da mulher está abaixo do salário do homem no Brasil, isto se dá pela média de profissões que cada um exerce no dia a dia (isto seria assunto para outro artigo), e não por receberem salários diferentes estando no mesmo cargo. Ainda assim, esta realidade também tem sido mudada. Hoje é possível ver as mulheres ocupando cargos de liderança, dirigindo grandes empresas, enfronhadas no meio político etc., é claro que num nível abaixo do esperado, mas como disse anteriormente, a mudança é construída, e é importante ser assim se quisermos que ela seja sólida.

No Brasil, há 84 anos a mulher tem direito a voto, há 86 anos a mulher tira habilitação de motorista... Essas são conquistas maciças, que, tardiamente ou não, apontam os triunfos que as mulheres têm alcançado num mundo ainda patriarcal. Durante o governo Médici (1969-1974), um dos governos mais ditatoriais do Regime Militar no Brasil, houve uma campanha de explícito incentivo para que as mulheres fossem tomar café nos botecos ruas afora, já que o comportamento feminino ainda era bastante tímido.

Em outros países, como nos do mundo islâmico, por exemplo, as mulheres até ontem não podiam ir aos estádios de futebol assistir aos jogos, não podiam dirigir, ainda hoje são apedrejadas, caso se comportem fora dos padrões estabelecidos. E havia quem defendesse pessoas como Khomeini, o aiatolá iraniano, causador de todas essas restrições e absurdos cometidos, no Irã, contra as mulheres desde 1979, na Revolução Islâmica; e há ainda hoje quem proteja países com essa cultura. Outras nações islâmicas, como a Arábia Saudita, não são diferentes da cultura misógina iraniana. Evidentemente tais países do Oriente Médio não são bons parâmetros para nós, entretanto, nossos avanços se deram também muitas vezes antes de grandes países mundo afora. Enquanto alguns países proíbem a mulher de algo tão simples, como assistir a um jogo futebolístico, o Brasil tem uma seleção brasileira feminina reconhecida mundialmente; antes mesmo da força do feminismo de 1972, a principal tenista mundial, a brasileira Maria Esther Bueno, já havia estado em primeiro lugar no ranking mundial por quatro vezes, numa época em que eram raras as mulheres que tinham acesso ao esporte, e não somente no Oriente Médio.

É muito claro que no Brasil o vício do patriarcalismo ainda é forte, mesmo que estejamos na frente de grande parte dos países do mundo, principalmente dos mais desenvolvidos. Por outro lado, negar que esta realidade, a do patriarcalismo, tem sido transformada é descabido. (Não tratei aqui sobre a questão da violência contra a mulher, visto que pela dimensão do tema ele merece um artigo exclusivo.)

A exemplo da força de Julieta e Lady Macbeth, não seria exagero Shakespeare usar a mulher brasileira como referência de força e de protagonismo em uma de suas obras, caso o dramaturgo inglês representasse esta era.

sábado, 7 de julho de 2018

Bauman e Steinbeck – O Peso de uma Lágrima

A família Joad, de As Vinhas da Ira, obra de Steinbeck, é forçada a se mudar de suas terras, em Oklahoma, durante a grande depressão americana, em decorrência da seca, das dificuldades econômicas e da execução de dívidas pelos bancos. Dessa forma, a família vê-se obrigada, já que não havia outras opções, a pegar a estrada por dias a fio, sem quaisquer recursos ou perspectivas, em direção à Califórnia à procura de emprego.

Não precisaria externar aqui os tantos entraves que a família encontrou pelo caminho, dos mais simples, como o desconforto da viagem num caminhão carregado, ao mais grave, como a morte surgida no meio do trajeto. Entretanto, não se viu em nenhum momento inércia por parte do grupo em decorrência de sensibilidade à situação, lágrimas a esmo, ou desespero congelante.

Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, alertou o mundo sobre o nascimento de uma sociedade líquida, que possui relações líquidas, isto é, tudo muda muito rapidamente, nada é feito para durar. Assim, eis o pensamento pós-moderno: “Mantenha-se num relacionamento enquanto este lhe der alguma satisfação, quando não der mais, troque por outro que a ofereça.” Estes são nossos tempos. A partir disso, resultariam questões como obsessão pelo corpo ideal; culto às celebridades; instabilidade nos relacionamentos, amorosos ou não; obcecação com a segurança etc.

Bauman nos diz ainda, ao tratar sobre a crescente intolerância ao sofrimento, que em uma vida regulada por mercados consumidores as pessoas passaram a acreditar que para cada problema há uma solução, e que esta solução pode ser comprada em uma loja.

Com tudo isso, vemos, grosso modo, uma sociedade apascentada em suaves melindres, em exigências que fariam um humano pré-histórico arrepender-se de ter contribuído com a procriação de sua espécie. Houve, à vista disso, no perpassar dos séculos, uma banalização, um empobrecimento no desenvolvimento daquilo que se chama emotional bond, os laços humanos.

Numa realidade em que a busca incansável e incessante pelo sucesso individual paira na mente das pessoas, e à medida que este triunfo nunca basta, a decepção é certa. Culturalmente nossa sociedade não mais está preparada para o fracasso, haja vista que o rumo que o mundo tomou não permite erros. No contexto líquido, alguém somente é aceito enquanto acerta. Nesta assertiva, certamente está planada um dos motivos de tanto aumento na medicalização psicotrópica infantil nos últimos anos.

Ao não saber lidar com a decepção, pessoas agarram-se em quaisquer postes para externar seu pranto, aproveitam cada oportunidade para chorar por motivos que ninguém imagina, depositam sua sensibilidade no primeiro ombro que aparece e buscam subterfúgios no primeiro olhar que a flecham.

Na lágrima que desce pela derrota do time de futebol do coração, por exemplo, estão implícitos muitos outros motivos; ao se chorar de emoção pela apresentação do filho no sarau do colégio está também o peso de toda uma vida; a criança, ao cair em choro compulsivo por cometer um leve deslize numa simples apresentação escolar, possui, nesta lamentação, toda uma pressão de aperto que não cabe num cérebro ainda tão imaturo; e alguém, ao se sensibilizar por um vídeo ou por uma foto, é tomado por várias outras emoções. De modo impreciso, nunca se chora apenas por uma derrota futebolística; nenhuma lágrima é apenas por ver o filho em cima do palco, e nenhum palco seria mau o suficiente para assistir as lágrimas de uma criança; nenhum pranto, por fim, reside isolado numa imagem ou num vídeo.

Ver o filho pequeno chorar porque o time pelo qual ele torce perdeu uma competição pode ser algo muito sério e talvez bastante profundo. Em outras palavras, pode ser muito mais que apenas lágrimas pelo time em si, e não deveria ser motivo de graça ou pena por parte dos pais; ver um adulto chorando pelo mesmo motivo pode ser algo ainda pior, pois já que um adulto é incapaz de se manter em equilíbrio, quando tomado por alegria, tristeza ou raiva, numa situação simplória como uma partida de futebol, o que esperar dele numa situação verdadeiramente desconsoladora, como a que a família Joad, de Steinbeck, viu-se obrigada a passar?