sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Dois Papas – um filme conceitualmente desprimoroso e inverídico

Um dos filmes de maiores sucessos de Quentin Tarantino, Bastardos Inglórios peca por mudar a história, uma história que já é difícil por si só. Está aí uma ideia perigosa. Se for para usar fatos e nomes verídicos numa história, que ela seja verdadeira, senão não passa de um descarado engodo, uma forma de confundir a sociedade aos bel-prazeres dos donos da obra. Em outras palavras, não passa de simples desonestidade intelectual.

O filme Dois Papas, não chega a mudar tanto a verdadeira história como Bastardos Inglórios, mas é igualmente inverídico.

O papa Bento XVI sempre foi injustiçado por pessoas que nunca se preocuparam em entender a Igreja, e são essas as pessoas que se metem em promover obras artísticas, quase sempre falando bobagens. O filme em questão pinta Joseph Ratzinger – posteriormente Bento XVI – como um homem conservador, arrogante e luxuoso, aquele homem antirreformador que manteria a Igreja no “atraso”, e chamado no filme muitas vezes de nazista.

Ratzinger serviu o exército da Alemanha em sua juventude, e que escolha ele teria diante de Hitler? O futuro papa pediu baixa pouco tempo depois, exatamente por não compactuar com tudo aquilo. E devemos lembrar que Führer teve 88% dos votos dos alemães, em 1934.

A visão de que Bento XVI era conservador é uma visão ignorante dos fatos. Foi ele, quando jovem, que foi o mentor de uma das maiores reformas da Igreja, o Concílio Vaticano II, que abriu as portas da Igreja, abriu o diálogo com outras frentes, como os luteranos e os presbiterianos. Foi ele também o cérebro do papado de João Paulo II, a quem convenceu a aderir aos quatro de cinco preceitos do evolucionismo, que são: a) tronco comum – a que João Paulo II se opôs –, b) especiação, c) evolução, d) seleção natural e e) gradualismo.

É uma incógnita o porquê de terem colocado o rótulo de conservador no papa que renunciou. Talvez por ele ter sido, antes de bispo de Roma, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que em tempos remotos chamava-se Suprema e Sacra Congregação da Inquisição Universal. No início do século XX, no entanto, mudou-se o nome e o caráter, que passou a ser de apenas adequação nas mudanças de rituais locais. Talvez tenha ele o rótulo de conservador por ter proibido o frade Leonardo Boff de publicar seus textos e artigos antirreligiosos e que utilizava a Igreja unicamente para fazer política barata, diferentemente de frei Betto, que explica o marxismo na realidade cristã. Boff sempre foi um homem anti-hierárquico, e deixou isso claro muitas vezes. Ora, se não aceita a Igreja, não tem de estar nela. Assumiu ele, para provocar Bento XVI, que vivia com sua secretária havia quinze anos (quanto orgulho!).

Bento XVI veio de uma realidade alemã, com poucos percalços, e lá, como professor universitário, tinha papel maior de pensar o mundo, de ensinar, diferentemente de Jorge Bergoglio, que teve sua realidade numa Argentina cheia de problema e, consequentemente, uma proximidade maior com os pobres. Bento XVI tinha uma aparência mais fechada por natureza, era mais introspectivo, e qual é o problema dessas características? O fato é que a todo momento pegavam no pé do papa alemão, por tudo. Implicaram com ele até com a cor de seus sapatos vermelhos, quando celebrou no Brasil. O Vaticano à época teve de se pronunciar explicando a alusão ao sangue de Cristo.

Quando surgiram denúncias de pedofilia no papado de Bento XVI, ele, diferentemente do que o roteiro sugere, foi duro na investigação e aproximou o Vaticano das paróquias mundo afora. Posteriormente, o papa Francisco deu continuidade.

Bento XVI foi o primeiro papa que sugeriu que Jesus era fruto da evolução da espécie, fazendo crer que falava sobre Noé, Abraão e Moisés; foi ele o responsável por trazer mandatos de seis anos, renováveis por mais seis, aos padres diocesanos – quem sabe sua renúncia não veio daí? (Até hoje não é clara a razão.) –; foi ele, ainda, que aboliu o limbo, já que, segundo a Igreja da época, era para lá que as crianças iam quando morriam antes dos sete anos sem serem batizadas; foi Bento XVI quem influenciou João Paulo II a perdoar Galileu Galilei, eliminando barreiras, criando interação e trazendo grande abertura para a Igreja, que, diga-se de passagem, tem um departamento de ciência, do qual fazia parte inclusive o ateu Stephen Hawking; Bento XVI, por fim e entre tantas outras coisas, pôs-se a favor do uso de preservativos onde havia disseminação de AIDS.

O longa, baseado em livro, afirma que o motivo da renúncia de Bento XVI foi o pedido de renúncia (até hoje muito duvidoso) do então cardeal Bergoglio, claramente uma mentira; o filme acusa injustamente o mesmo cardeal de ter ficado do lado dos militares no início da ditadura na Argentina, ignorando completamente o papel de um sacerdote; o filme foca também em outro ponto muito duvidoso: uma feia briga entre o papa Bento XVI e Jorge Bergoglio.

O filme Dois Papas é conceitualmente desprimoroso e inverídico em muitos aspectos, feito por gente que possivelmente não entende nada sobre a Igreja e que só quer bagunçar e polemizar, prática, infelizmente, comum de muitos artistas. Se os produtores e o diretor quisessem fazer uma ficção, que tivessem ao menos a hombridade de utilizar nomes fictícios.

O longa-metragem tentou destruir a imagem do maior pensador vivo da Igreja, talvez o maior pensador vivo da humanidade. O filme rotulou de retrógrado um dos maiores reformadores da Igreja Católica.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Abdicação

Diante de uma realidade individualista e hedonista, características predominantes do ser humano na era pós-moderna, sacramentou-se a ideia do “ame-se acima de tudo!”. Essa foi a "fórmula mágica" encontrada para fugir de desilusões diversas. Atualmente, aconselhar o semelhante a sacrificar-se é uma espécie de crime.

Particularmente, não consigo imaginar o amor sem que haja um locutor e um interlocutor, isto é, não posso conceber a ideia do amor sem algo que forneça a possibilidade de reciprocidade. Amar a si próprio seria, portanto, além de uma impossibilidade clara, o absurdo do pedantismo e da soberba.

Relacionamentos têm sido cada vez mais frágeis, cada vez mais líquidos, cada vez mais vulneráveis, à medida que se aumenta a tese do “colocar-se a acima de qualquer coisa”. Para que qualquer espécie de relação tenha a menor chance de ocorrer satisfatoriamente, é necessário abstrair-se de presunção, é necessário sacrificar-se em prol do próximo, abdicar, muitas vezes, de seus desejos e de suas vontades. Isso não quer dizer que deva haver num relacionamento um servo e um senhor, mas a possibilidade de renúncia de todas as partes envolvidas. Também isso não quer dizer que num relacionamento sempre deverá valer a ideia do outro em detrimento da sua. É preciso tomar cuidado com os extremos.

Colocar-se sempre em primeiro lugar não significa ser mais feliz nem se livrar do famigerado “fazer papel de bobo”, mas, pelo contrário, colocar-se sempre em primeiro lugar apenas o tornará mais infeliz e com poucas chances de fazer qualquer relação funcionar perene e decentemente, tendo, à vista disso, um efeito contraproducente.

Quando Jesus alerta para o fato de “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22, 39), está indicando Ele empatia e compreensão, e não a arrogância que tomou o ser humano a partir dessa premissa. São Paulo nos indaga: “O que é que possuis que não tenhas recebido?”

“Ame-se!”, “coloque-se em primeiro lugar!” e “pense em você!” são conselhos perigosos, já que sempre quando vêm estão fechados em si. Livrar-se das algemas de relacionamentos possessivos e dependentes foram grandes conquistas para muita gente, mas é preciso sempre lembrar que um relacionamento não funciona quando cada um apenas pensa em seu próprio bem-estar, em seu próprio sucesso, e pensar dessa maneira apenas porque se vislumbra uma possível ruptura é trazer à vida ansiedade e sofrimento para si e para o próximo.

Mas como diria Antônio Abujamra, “a vida é sua, estrague-a como quiser”.