segunda-feira, 31 de agosto de 2020

A consequência da alma decadente

Como já afirmei em outras ocasiões, o cinema nacional é grandioso, é belo, é distinto, assim como nossa música, nossa literatura, assim como é a beleza natural que permeia cada canto deste país. Hoje, contudo, as coisas estão bastante deterioradas, é verdade, hoje os filmes, em grande parte, só querem falar sobre banalidades, através de uma comédia de muito mau gosto (já que é isso o que comove as pessoas em sua decadência à procura de amor próprio e bem material); a música parece um túnel sem saída; a literatura anda pobre e sem conteúdo; e a beleza natural é devastada por canalhas e cafajestes, grande parte deles vivendo em Brasília. Mas a deterioração está na alma, a decomposição da arte é apenas consequência. 

Não dá para saber se essa decadência é ou não apenas uma fase. Sabemos que a educação não anda bem das pernas, e se engana quem pensa que a solução está nos colégios privados, porque a quase totalidade deles não presta e é pior que qualquer escola pública, a despeito de, infelizmente, tentarem nos convencer do contrário. O que sabemos de antemão é que essa decadência não é exclusividade brasileira. Coitados dos pobres arrogantes americanos e europeus que sentem pena da América Latina ou do Oriente Médio. Coitadas das pobres almas que pensam, ainda, que a solidão (que não é solitude) é exclusividade das grandes metrópoles, ou que a solução para fugir dessa mesma solidão seja infiltrar-se em aglomerações diversas. 

Sugiro conhecer um pouco mais de nossa bela arte, e aqui deixo uma sugestão cinematográfica: “Noite Vazia” (1964), de Walter Hugo khouri. O filme, à la Bergman, conseguiu escapar da predominância do Cinema Novo da época, e pela ousadia e alta qualidade técnica e de conteúdo merece nossa atenção. A obra, em síntese, retrata a pobreza espiritual da sociedade paulistana daquele momento, mas, como eu disse, essa pobreza excede os limites de qualquer cidade grande. 

Não será fácil sair do buraco no qual entramos, mas o primeiro passo talvez seja parar com a hipocrisia do tal amor próprio, porque enquanto sua alma não aprender que o amor exige entrega e abdicação dos próprios orgulhos; enquanto sua alma não aprender que a saída não está em sua carência exacerbada por companhia; enquanto sua alma não aprender que o amor necessita de reciprocidade, e não é um fim em si mesmo; enquanto em sua alma, por fim, existir esse ódio e essa terceirização de responsabilidade e de culpa, essa decadência jamais terá fim. 

Os artistas, e consequentemente a arte que produzem, não são seres extraterrestres, mas são parte da cultura que criamos ou que adquirimos. Que os grandes artistas que por aqui nos deram a honra de sua passagem não morram jamais, e que sejam conhecidos, especialmente num momento vazio como esse, em que as motivações são torpes, os objetivos, fúteis e a imagem de nossa bela arte, apesar de seu atual momento, é repudiada, especialmente por quem não a conhece de fato. A deterioração está na alma, a decomposição da arte é apenas consequência.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Três gigantes literários e seu contexto

John Steinbeck foi simplesmente perfeito em sua literatura, tanto na parte textual, de técnica e de criação, quanto em suas intenções dignas. Em sua escrita pragmática, lutou através das armas que possuía para combater as injustiças e ficar ao lado dos desvalidos e dos perseguidos. Como disse certa vez Ariano Suassuna: “Eu não tenho poder político, nem econômico, nem nenhum outro, mas tenho uma língua afiada que só a peste, e ela está a serviço de meu país”. Que arma mais bela a de um escritor, e que frase fantástica. 

Em “As Vinhas da Ira”, Steinbeck coloca uma família, os Joad, que se vê obrigada a abandonar sua casa em decorrência da ganância de quem detém o poder econômico, e a viagem à procura de emprego e de sobrevivência é sofrida ao extremo; já em “Ratos e Homens”, o escritor nos apresenta a história trágica de dois trabalhadores rurais que também procuravam formas de sobrevivência, sem nunca, contudo, abandonar o sonho de comprar sua terra; temos também “A Pérola”, livro em que Steinbeck conta a história de um casal de índios que apenas quer curar seu filho, após este sofrer uma picada de escorpião. Mas ao buscar essa ajuda na cidade, só encontra olhares condenatórios. É preciso estômago e sensibilidade para ler Steinbeck. É de chorar! É uma experiência incrível! 

Saindo dos EUA, e atravessando a Europa, chegamos à Rússia. Dostoiévski, que viveu no século XIX, não teve uma vida simples, é notório, nem uma vida muito plácida, é verdade. Era viciado em jogos e tinha muitos problemas de saúde, vivia em dívida, mas sua alma, apesar de turbulenta, era pura, era justa, e combateu ferozmente, através das mesmas armas de Steinbeck e de Suassuna, o regime autoritário de sua época. Foi condenado à morte por isso, e teve sua pena convertida em prisão de trabalhos forçados. Sobreviveu, e produziu obras gigantescas, as melhores da história da literatura em seu segmento. Densa, profunda, ousada, complexa. São os adjetivos que eu daria à obra de Dostoiévski. Diferentemente de Steinbeck, o escritor russo tinha um enfoque maior sobre a alma humana e suas angústias que sobre a temporalidade em si, mas ambos, em síntese, combateram veementemente as mesmas coisas. Freud, leitor assíduo de Dostoiévski, chegou a afirmar que “Os Irmãos Karamazov” era a obra magna da literatura ocidental. 

Terminando nossa volta ao mundo, e chegando a nossa terra, o Brasil, Machado de Assis talvez seja o escritor brasileiro que mais se aproximou dos dois que citei acima, certamente mais de Dostoiévski, já que dissertou brilhantemente sobre questões tão profundas do homem, apesar de também, a exemplo do russo, ter combatido, como Steinbeck, as injustiças de seu tempo. Em sua maior obra, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado leva o patamar da literatura brasileira a um nível jamais visto. Tal obra é um divisor de águas, tanto na escrita brasileira, quanto em sua própria carreira. O livro foi tão grandioso e complexo que levou Capistrano de Abreu, historiador cearense, a perguntar ao próprio Machado se a obra era um romance. E que ousadia escrever em primeira pessoa, e que ousadia se colocar no papel de um homem morto. Brilhante! O carioca criticou magnificamente, e com muita classe, as desigualdades sociais e a classe dominante da época, através de uma ironia de muito bom gosto. Uma pena que o longa-metragem, de 2001, transformou-o num circo. 

Numa obra seguinte, Machado de Assis explora a personagem Quincas Borba, já presente em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, teórico do humanitismo – filosofia fictícia criada por ele mesmo. Aqui, o escritor aborda as questões sociais da época, a partir da filosofia do próprio Quincas, e faz críticas aos costumes ali vigentes. Por fim, e para citar uma obra um pouco menos conhecida do maior romancista brasileiro de todos os tempos – e um dos maiores do mundo –, “Relíquias da Casa Velha” retrata a perseguição de escravos foragidos. Nesta obra, o autor critica a forma com que a sociedade tratava os negros, e faz severas críticas à desigualdade social. 

Os três escritores possuem diferenças entre si, é óbvio, e talvez o que mais se distancie entre eles seja o próprio Steinbeck, que foi mais direto em sua mensagem, pragmático, como já mencionado, enquanto o russo e o brasileiro exploraram mais as questões psicológicas e filosóficas da alma humana, da vida... Todos eles, no entanto, e apesar das diferenças de abordagem e de discurso, fizeram as mesmas críticas. Todos eles foram, enfim, de vanguarda. E que vanguarda. Como foram corajosos, e que vida esplêndida. O que diriam eles, se vivos estivessem, de Trump, de Putin e de Bolsonaro (e ainda de outros que por aqui passaram), respectivamente? O que abordariam em suas obras? Quais críticas fariam ao mundo e à ganância de poder de hoje? Certamente este é um exercício rico e interminável de suposições, de conjecturas, de mistério, digamos. Mas apesar de não sabermos ao certo, uma coisa é garantida: nossos líderes estariam em maus lençóis.