domingo, 17 de julho de 2022

O dodecafonismo

 

O dodecafonismo está dentro das vanguardas do século XX, e é uma nova forma de se pensar música. Ele, por outro lado, não rompe totalmente com o passado, dado que na cabeça de Arnold Schönberg (1874-1951), o pioneiro desse método, o dodecafonismo seria a centralidade da tradição austro-germânica e a continuidade da tradição. Em pensamentos megalomanícos, chegava a dizer, como afirmou a pesquisadora Dorotea Kerr (Instituto de Artes da Unesp), que havia feito uma descoberta que garantiria a supremacia da música alemã por algumas centenas de anos.

Há tempos, o tonalismo era a regra das composições. Mas com o passar do tempo, alguns compositores começaram a questionar essa forma, a qual passaram a achar que de alguma forma ela engessava as músicas e que talvez já estivesse se esgotando. Dessa maneira, alguns compositores do Romantismo e também do Impressionismo, como Wagner e Debussy, respectivamente, passaram a inserir em suas obras pontos de cromatismo e fuga do tonalismo, o que abriu o precedente para o atonalismo.

Pois bem, o atonalismo, muito presente na escola do Expressionismo, era a emancipação dos doze tons da escala, isto é, sua liberdade; a emancipação da dissonância, portanto. Mas era complicado escrever grandes obras inteiras dessa maneira, até porque o tonalismo ainda era muito forte, culturalmente falando, e, diferentemente do tonalismo, o atonalismo não possuía leis, regras, não havia regulamento para suas composições. O dodecafonismo, então, regulamenta essa nova forma de se fazer música; procura agrupar os sons com lógica, com técnica.

O dodecafonismo é, sintetizando, um método de compor - criado a partir de 1920, aproximadamente - com os doze sons de nossa escala cromática, fazendo, contudo, com esses sons não se relacionem entre si. Schönberg queria que esse método pudesse dar conta, à vista disso, de compor nas grandes formas da tradição austro-germânica, como sinfonia, sonata allegro, rondó etc.

Uma das garantias de não se criar nenhum centro, ou algo que lembrasse o sistema tonal, era não se enfatizar nenhuma nota, isto é, nenhuma nota poderia se repetir até que aquela série de notas em questão terminasse e tivesse passado por todas as notas da escala cromática. Essa série da qual falo era construída para gerar melodia e também harmonia. Caso queira, leitor, ouvir algumas dessas músicas de Schönberg, ouça “A Escada de Jacó”, uma de suas primeiras composições nesse método, e a belíssima “Um Sobrevivente de Varsóvia”, esta de 1947, quatro anos antes de sua morte.

No planejamento da peça dodecafônica, o compositor escolhia a ordem das notas sem salto de oitava e sem repetir essas notas até que todas as da série tivessem sido utilizadas, e, claro, não escrever nada que lembrasse uma tríade, ainda que outros compositores desse método, como o austríaco Alban Berg, não respeitasse tanto essa última regra. A partir disso, o compositor fazia tratamentos, com essa série, de quatro maneiras. Diga-se, quatro séries. (para frente, “p”, de prime; para trás, “r”, de retrógrado; inverter, “i”, de inversão, e o “ri”, retrógrado invertido). Essas músicas não precisam necessariamente soar como uma melodia, nem podem conter intervalos que ofereçam possibilidade de resolução, como no tonalismo. Perceba, leitor, que compor no modo dodecafônico é extremamente complexo, sobretudo para quem possui sua cultura pautada no sistema tonal.

O compositor poderia começar qualquer série em qualquer nota da escala. Tinha o compositor, portanto, um quadro de notas de séries que poderiam ser feitas de 48 séries, a partir daquela original, ou seja, o autor tinha 48 possibilidades de usar a série, já que são doze notas e quatro séries. As séries também podem ser segmentadas de muitas maneiras diferentes, mas duas formas muito comuns são a hexacorde (termo da Idade Média), divisão a cada seis notas, e a divisão de quatro em quatro notas.

Como aponta Dorotea Kerr, o uso de fazer inversão, retrógrado e retrógrado invertido vinha de uma tradição, e não era, dessa maneira, uma total invenção de Schönberg. No Renascimento havia motetos complexos fazendo cânones e cânones invertidos. O próprio Bach utilizava muito desse jogo, desse exercício. Em outras palavras, não havia no dodecafonismo absoluta ruptura com o passado.

Nas séries, não obstante, faltavam ainda questões importantes que foram percebidas posteriormente, como textura, timbres, ritmo e dinâmica. O Serialismo Integral, movimento do pós-Segunda Guerra, então, integrou tudo isso nas séries dodecafônicas. A textura poderia ser homofônica ou polifônica, e Schönberg – que tinha muita admiração por Bach –, assim como Webern, utilizava a polifonia, mantendo outro pé na tradição. Schönberg nunca chamou o dodecafonismo de sistema, mas de método de composição. Sistema, segundo ele, era o próprio tonalismo, que Schönberg jamais desprezou, muito pelo contrário, ele mesmo compôs muita coisa tonal, mesmo depois do dodecafonismo. Schönberg, ainda, não aprovava o nome “atonal”, o qual para ele não significava nada.

Algumas críticas surgiram:

1. As séries poderiam ser percebidas pelo ouvinte? Não poderiam, mas esta era a intenção. Mas a crítica ia de encontro ao fato de o ouvinte não ser capaz de entender, e de a composição ser muito cerebral e intelectual. Para quem vinha da tradição romântica, essa composição mais cerebral não devia fazer mesmo muito sentido.

2. Esse tipo de composição musical não fazia diferença nenhuma.

3. Era um ato mecânico e, portanto, qualquer um poderia fazer, caso dominasse essa técnica de composição, bastaria conhecer as regras. A crítica considerava que a inspiração e o talento morriam com o dodecafonismo, e que o jovem compositor não mais precisaria conhecer nada além das novas regras. Para os adeptos do dodecafonismo, porém, era preciso ter muito talento para conseguir transformar essas regras numa música.

E quais foram as influências de Schönberg nesse método?

1. Brahms  com a técnica da variação que Schönberg usava; o uso de frases assimétricas; o uso do contraponto.

2. Mahler – uso de timbres e orquestração.

3. Wagner – fluidez harmônica, uso de cromatismo, melodias bem fluídas, ainda que conclusivas.

4. Strauss – cromatismo cada vez maior e mais aprimorado.

O dodecafonismo era uma forma de compor que provia a lógica, a coerência e a unidade, três fundamentos da música ocidental. O passado para Schönberg era algo muito presente e tinha uma ligação bastante forte com a tradição. Inclusive Schönberg nunca renegou a primazia do sistema tonal. Com tudo isso, os críticos da época passaram a dizer que Schönberg estava reconhecendo que não era possível fugir do tonalismo. O que talvez eles não tivessem entendido é que todas as criações existem com base na história. 

O dodecafonismo foi a base para o serialismo no pós-Segunda Guerra, e seus expoentes são: Babbit, Boulez e Stravinsky – que, por sua vez, em busca de uma nova vida após a Revolução Russa, morou no mesmo bairro de Schönberg, em Los Angeles (EUA), quando Schönberg fugiu do nazismo, em 1933. Ambos, todavia, nunca se encontraram.

Schönberg criticava, ainda, a música nacionalista e a música neoclássica, como a de Bartók, já que para ele, os compositores desse período não faziam um papel satisfatório quando criavam releituras de períodos anteriores, como o Barroco.

Essas tendências de vanguarda do século XX, por fim, foram banidas no período do Nazismo, na Alemanha, e também na União Soviética da época, uma vez que passou a ser considerada, nessa fase, sinal de decadência ocidental. Como percebemos, apesar de sua proibição, o dodecafonismo não morreu, mas, pelo contrário, criou novo fôlego após a Segunda Guerra Mundial, como eu mencionei com o Serialismo Integrado, mas também, por outro lado, não chegou, como percebemos atualmente, a virar uma forma de composição de grande alcance. Poderíamos pensar em vários motivos para isso, mas com certeza não foi porque essa nova forma de composição era ruim ou fraca, longe disso, foi uma ideia genial.

 

domingo, 17 de outubro de 2021

Joões e Josés

Aqui embaixo choram joões e josés,

e as rosas já não falam.

Choram cartolas

e as botinas da guerra da vida.

Aqui embaixo,

enquanto chegam as lágrimas ao peito,

outras já esperam sua vez.

E choram e se calam e se reprimem

porque são calados, porque são reprimidos,

esquecidos, ludibriados, traídos.

Ah, pessoas da sala de jantar,

entretidas, embora insatisfeitas,

a panis et circenses.

E aqui eu me defino, aqui,

embora insatisfeito, sob histórias e memórias,

sob Blanc, o Aldir, que um dia chorou

com as marias e as clarices,

de Fiel e de Herzog,

na terra de Henfil e dos joões e dos josés e

das marias, das clarices e das rosas.

E salas de jantares mundo afora,

domésticas e babás e mordomos e choferes

servem a quem está seguro em sua

comodidade e seu conforto,

enquanto aqui embaixo se pisa em campo minado

e vê-se apenas um doloroso fogo cruzado

de partidos, demagogos, populistas e canalhas

e ricos que lutam por preservar a sua riqueza,

e sua pureza? Ah, esta já se foi,

e o que sobrou foram uma educação tacanha,

uma fila inesgotável nos corredores da morte

de hospitais sem humanidade, um verdadeiro

salve-se quem puder,

enquanto ricos, líderes, demagogos, populistas e canalhas

deliciam-se com seus cabernets e seus banquetes,

às custas de uma democracia provinciana, vulgar,

às custas de quem apenas tenta sobreviver,

e é triste ver que isso basta para um sorriso,

um tanto tímido, é verdade,

um tanto retraído, um tanto esperançoso.

E quanto mais se luta, mais se regride,

segundo o entendimento da ilusão amarga que se retroalimenta em nós,

porque tantos não querem o progresso além do seu,

não querem a felicidade que nasce do chão,

o mesmo chão que pisam patrões com seus

sapatos de diamantes, e sobram quilates

e sobram escárnios e sobra fome e sobra miséria.

Mas nas datas comemorativas,

nós, os joões, josés, marias, rosas e clarices

somos homenageados.

Uns parabéns ao professor,

que não tem liberdade, nem apoio, nem dinheiro,

mas é seu dia;

uns parabéns ao artista,

que não vive de sua arte, já que precisa viver;

uns parabéns às mães e aos pais e aos avós,

que, em sua maioria, não têm o que comemorar;

uns parabéns à independência do Brasil,

cujos cidadãos não desfrutam dessa autonomia;

uns parabéns à natureza e à Amazônia,

que pouco a pouco se esvaem;

ao índio, ao preto, ao trabalhador, ao jornalista...,

que sorriem diante de tais parabéns,

mas que choram nos outros 364 dias do ano.

Minha repulsa, porém, ao artista que se cala,

que se esconde, que se fecha, ou que finge que não vê.

O medo que mata a alma mata o progresso

e mata o amor.

E como Sísifo, eu empurro uma pedra

montanha acima, apenas para ser esmagado

e ter roubada minha dignidade, meu orgulho,

mas parabéns ao professor, o sísifo contemporâneo.

E na roda-gigante da vida,

fez Drummond uma pergunta à la Platão,

fez Drummond a pergunta da vida:

“José, para onde?”

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Resplendor do Sol

Uma leve neblina repousava sobre aquele domingo. O sol, sempre alegre, resistia em presentear os corações, que àquela altura já estavam contaminados com o semblante obscuro das nuvens.

A caminho de uma casa de repouso destinada a idosos, uma jovem dirigia-se reticente. Resplendor do Sol era como chamavam o espaço de acolhida, nome nada condizente com aquele dia, mas diziam que assim era chamado em função da intensa luminosidade solar que incidia diariamente sobre seu quintal.

Ao chegar ao portão de entrada, notou que ele estava destrancado, e entrou. No mesmo instante, uma empregada do lugar, ao perceber uma movimentação no entorno, foi ao encontro da jovem para recebê-la.

– Boa tarde, moça – disse com simplicidade a empregada.

Ambas já se conheciam.

– Boa tarde – respondeu a jovem, – minha mãe está bem?

– Está, sim. Fique à vontade, ela está com os outros.

Dona Lúcia residia na Replendor do Sol havia aproximadamente um ano, e desde então sua filha, Tarsila Proença, visitava-a semanalmente. Já se habituara à condição de sua mãe – que padecia de uma demência degenerativa –, apesar de sofrer em seu íntimo em todas as visitas que fazia ao local. Tarsila inclusive já se havia tornado amiga dos outros membros da casa, especialmente da alegre senhora Branca e do cantador Ulisses, um pobre velhinho que, de sua cadeira de rodas, vivia cantarolando melodias folclóricas.

Ao entrar na sala principal da casa, Tarsila deparou-se com meia dúzia de velhinhos reunidos. Alguns assistiam a um programa dominical pela TV; outros cochilavam sentados; e outros, como dona Lúcia, olhavam para o nada, como se apenas estivessem esperando o domingo e a vida passarem.

– Mãe, tudo bem com a senhora? – perguntou carinhosamente Tarsila, após cumprimentar os outros moradores.

Dona Lúcia nada respondia. Sua demência, apontava a medicina, já estava num nível de não reconhecer quem quer que fosse. Alguns dos idosos despertaram seus olhares para Tarsila. Ao lado de dona Lúcia, uma senhora iniciou um pranto sutil e abrupto, e foi ignorada por todos ao seu redor, até mesmo pelas empregadas da casa, que decerto já estavam acostumadas com tais situações. O sofrimento que cada um deles levava em seu âmago poderia ser para sempre uma infindável e impenetrável incógnita.

Nesse momento, Tarsila desatou o nó que prendia dona Lúcia à cadeira para levá-la ao lado de fora da casa. Queria conversar com sua mãe, fazê-la andar um pouco. Não sabia há quanto tempo ela estava inerte naquele lugar. Lúcia, sem muita resistência nem muita vontade apenas deu vazão ao destino e levantou-se para que ambas se sentassem no quintal. À medida que andavam, o olhar curioso dos colegas ao lado deixava nítida a vontade de cada um deles de também receber uma visita que fosse. Tarsila, no entanto, era a única a estar ali.

Onde estariam, pois, os filhos, os netos e os amigos dos outros velhinhos? Estariam no conforto de seu lar? Estariam no parque com sua família? Estariam criando coragem para abdicar de seu domingo e ir, com esforço, à casa de repouso? Era, todavia, tudo um enigma.

Eleonora, a cozinheira da casa, levou o almoço de dona Lúcia até o sofá no qual ela estava com sua filha. “Não se preocupe, eu dou a comida a ela”, disse Tarsila.

Enquanto mãe e filha compartilhavam da companhia uma da outra, a senhora Branca, que acabara de despertar de um cochilo, foi até o quintal cumprimentar Tarsila Proença.

– Sente-se com a gente – convidou Tarsila.

– Como está a senhorita? – perguntou a senhora Branca à medida que se sentava.

– Tudo bem. E por aqui como estão as coisas?

– Está tudo bem, minha filha. Muito obrigada – respondeu Branca com carinho de mãe.

– Há quanto tempo mesmo a senhora está aqui?

– Estou há um ano e meio, minha jovem. Eu morava com meu filho, até que o maldito câncer o levou de mim.

– Sinto muito, senhora.

– Nenhuma mãe deveria ver seu filho morrer – prosseguiu Branca –, mas eu sei que ele está em boas mãos. Desde então estou neste lugar. Minha filha achou melhor que eu me instalasse aqui, já que seria ruim eu continuar sozinha naquela casa enorme.

Dona Lúcia, nesse momento, começou a emitir alguns sons irreconhecíveis.

– E sua mãe como está? – perguntou a senhora Branca ao ouvir Lúcia.

Tarsila respirou fundo enquanto pensava por onde começaria, mas foi interceptada por Branca, que certamente sentia falta de uma boa conversa.

– Às vezes eu a pego chorando. Você acha que ela se lembra de algo? – perguntou a doce senhora.

Tarsila teve seus olhos marejados. Eleonora, da janela da cozinha, chamou pela senhora Branca:

– Venha me ajudar, por favor, Branca.

– A senhorita me dá licença – disse ela a Tarsila.

Tarsila sabia que Eleonora apenas tinha chamado Branca para que ambas, mãe e filha, ficassem a sós.

Enquanto dona Lúcia continuava a emitir sílabas aleatórias, Tarsila abraçou-a intensamente. “Como você me faz falta”, disse a filha. “A senhora sabe que só está aqui para sua própria segurança, não é, mãe?”

Apesar de dona Lúcia não emitir qualquer reação ao carinho da filha, Tarsila sabia que de alguma forma ela entendia tudo o que estava acontecendo; sabia, em sua alma, que dona Lúcia tinha ciência das pessoas de sua vida, e que apenas era incapaz de demonstrar seus sentimentos em virtude de sua doença, que a tomava paulatinamente. “Como deve ser difícil, mãe, sentir e não conseguir demonstrar, e mundo afora tanta gente sadia não o faz. Como deve ser difícil todo mundo pensar que a senhora não entende das coisas, enquanto a senhora sabe de tudo o que está acontecendo”, dizia Tarsila no ouvido da mãe. “É por isso que a senhora chora?”, arrematava.

“Que motivo uma pessoa, que já não possui mais perspectiva na vida, tem para continuar seus dias? Que motivo uma pessoa nessas condições tem para ser feliz? Qual foi o veneno que enfeitiçou sua alma e a tornou escrava deste mundo?”, perguntava-se Tarsila, cedendo humanamente às suas fraquezas.

Eis que uma melodia bastante agradável surgiu do fundo da casa. Seguramente vinha de Ulisses, que, alegre, foi se aproximando com sua cadeira para tomar um ar após o almoço. Enquanto dona Lúcia mantinha-se imóvel, Tarsila, enxugando os olhos, sorriu diante da alegria de Ulisses, e foi tomada por um forte sentimento de esperança.

Alguns momentos depois, ao levar sua mãe para a sala de onde a tirou e despedir-se dela, Tarsila deixou o cômodo sentindo-se mais leve. Notou ela que era o amor o grande responsável por manter as pessoas neste mundo. O amor não pela vida em si, mas o amor pelos seus. Ulisses era feliz porque, como os outros, levava consigo a esperança de receber uma visita a qualquer momento, e cantava para expressar isso; a senhora Branca tinha o consolo de um Deus misericordioso e o amor incondicional por sua filha, além da doce memória de um filho que partiu; dona Lúcia, apesar de não expressar convencionalmente o que quer que fosse, tinha um enorme sentimento guardado dentro de si, e por isso era apanhada chorando eventualmente.

Antes de sair da casa, Tarsila fez um cartaz e pendurou-o na parede que ficava de frente para o portão de entrada para que outros parentes tivessem a clareza que ela teve naquele momento. Nele dizia:

“A vida que aqui subsiste é alimentada por um amor intenso e genuíno que cada um dos velhinhos leva vivo em seu espírito. A vida que subsiste aqui é alimentada pela esperança de ter os seus próximos de si. É o amor que mantém este lugar vivo! É o amor que faz com que esses velhinhos mantenham sua sanidade, ainda que ninguém acredite. É o resplendor do sol que os fazer querer continuar vivos. Não abandone seus velhinhos!”

Tarsila foi para casa com a dor ligeiramente atenuada, apesar do peso da alma, e entendeu a razão do nome da pousada. Não é porque o sol incida em seu quintal, mas é porque é através dele que ali se fomenta o doce néctar da vida.

sábado, 21 de agosto de 2021

Doce ilusão

O que fazemos nós senão apenas conviver com hostilidade em meio a tanta desordem, com leves pinceladas, admito, de alegria e de esperança, cujo único objetivo, no entanto, parece ser nos manter lúcidos no fogo cruzado? Justiça seja feita, nossa contribuição para o mencionado caos não pode ser desprezada. Envergonhe-se!

Sim, no meio das pequenas doses de sorrisos largos que vez ou outra nos pega de surpresa, lá estamos nós a pagar seu preço: cansaço, preocupação, esgotamento, insanidade contínua, agitação, frustração..., para desfrutarmos, veja só, de alguns momentos raros de júbilo. O custo-benefício dessa relação, admitamos, é baixíssimo, e estamos nós sempre a avaliar que não aproveitamos bem nosso insólito tempo livre. “Mas a vida é assim mesmo”, convencemos nossa pobre alma, que de algum modo se acostumou com pouco, infelizmente.

Não me chame de pessimista, este estereótipo também já se esgotou, por Deus! Quando se olha o Sol aquecido lá no céu, o coração se alegra; quando se nota, por outro lado, o prenúncio de uma tempestade inexpressiva e taciturna, esse mesmo coração se retrai como uma flor que se esvai na seca de terras inférteis. Um ser cuja placidez é subalterna do humor dos paradoxos da natureza não é o melhor juiz para aferir, nem tampouco separar, o que é apenas uma constatação do real, de uma melancolia patológica referendada por fatores que estão além de seu juízo. O mundo está aí.

“De fato, o mundo pós-moderno...”, concordariam justificando alguns convertidos, poucos. Não, nossa era é apenas nossa era. Cada geração pôde vivenciar os meandros das arrelias de seu tempo, e por uma razão bem simples: apesar da evolução cultural das sociedades (e isso é apenas um ponto de vista categoricamente subjetivo), a essência da alma segue firme em sua constante imobilidade. “Ame, o tempo passa!”. Jamais me vendi às ideias pseudopoéticas que apenas destroem qualquer espécie de cognição fina. Amar não é como vestir uma peça de roupa, não é, portanto, uma escolha. Como expressar os sentimentos que se possui, sim, talvez seja algo mais palatável para tal discussão, mas isso também está condicionado a fatores que grande parte dos “poetas” do streaming não compreende, como a natureza do próprio coração, a história de vida de cada um e – por que não? – a resposta que se espera do mundo.

Não é possível ser feliz, mas apenas estar feliz, a felicidade é circunstancial. Somos seres completos no que se refere à individualidade, mas incompletos mediante nossos infinitos abismos internos. Talvez a percepção da realidade e, consequentemente, do mundo, seja também subjetiva, mas quando esta é tomada por um subterfúgio covarde ou uma clara ignorância do que se vê, os olhos da verdade ofuscam-se diante da própria ilusão. 

Fazendo, por fim, uma breve analogia com a guerra da vida, o mundo é o campo minado e a felicidade é o passo que se dá sem a explosão. É muito pouco, afinal, mas essa é a dinâmica imutável da vida, não importa o quão avançamos, como sociedade, ao logo dos séculos. Pobre do ser que se deixa enganar pela doce ilusão da qualidade do irreal; pobre do ser, como eu, que vive o mundo concreto, ainda que esporadicamente tenha a alma ludibriada pelos olhos da fraqueza. 

domingo, 27 de junho de 2021

Reféns das novas tecnologias

 

Sem que percebamos, ou não, a tecnologia vem nos deixando mais preguiçosos.

A palavra “tecnologia”, que provém do grego tekhnologia (tekno+logos), significa conhecimento científico da técnica, que por sua vez quer dizer toda influência do homem na natureza, como até mesmo o domínio do fogo. Portanto, referir-se à tecnologia como sendo apenas a partir do século XX é totalmente descabido. É preciso levar em conta, por outro lado, que a partir da Revolução Industrial e da automação e de novos meios mecânicos, tudo foi intensamente acentuado, até chegarmos à tecnologia digital contemporânea com a qual lidamos hoje.

Essa tecnologia atual, que é um avanço paulatino dado ao longo dos milênios, é ruim então? Não, mas o uso dela está em nossas mãos. Hoje um homem de classe média baixa vive melhor que um homem das altas classes do século XVIII, na pré-Revolução Industrial. Hoje há transporte coletivo, TV em casa, celular, filhos na escola, vacinas, contas no banco; hoje os empregados podem ter ações das empresas nas quais trabalham (algo que Marx não previu em seus estudos); hoje, mediante tudo isso, o ser humano vive mais. É claro que a Revolução Industrial colocou muito poder na mão dos proprietários, como constatou David Ricardo, e favoreceu absurdamente o aumento do aquecimento global, que já ocorre há milênios, mas foi também graças a ela que hoje a mulher tem espaço nos meios sociais e no campo profissional, graças a ela temos a maior parte das coisas que temos hoje.

Como eu disse, todo avanço é gradual. No século IV a.C. tivemos Platão; no século I tivemos Jesus; na Idade Média tivemos o matemático Fibonacci; no século XVIII Roger Bacon desenhou (mesmo sem poder fazer) o navio a vapor, o balão aeróstato, o trem, o carro, o telescópio, entre outras coisas; o século XX teve o avião, o computador, os satélites artificiais...

Por outro lado, no entanto, nossa geração parece ter perdido o controle de toda essa novidade, e tem exagerado na dose, e todo remédio em doses cavalares pode levar à ruína.  

Ir a uma locadora junto à família num fim de semana para alugar um filme era um ritual deslumbrante, e hoje nem mesmo se sai da cama para isso. Quase tudo inclusive se pede a partir do aconchego: livros, comida, filmes, compras em geral etc. Até para fazer um curso, hoje se opta por fazê-lo on-line. Nas escolas, os recursos digitais vêm se tornando preponderantes. As crianças praticamente nem sequer saem mais para brincar, quase tudo é movido por aparelhos eletrônicos. Quando alguém resolve sair da redoma para, por exemplo, fazer uma corrida, já não se consegue sem que esta seja movida por uma música ou um podcast: a perigosa necessidade de se estar o tempo todo distraído.

Com todo esse dinamismo e imediatismo, perde-se a referência do processo, da construção, da espera, da paciência... Fica difícil ir dormir acompanhado do próprio eu, e enfrentar-se se tornou doloroso, é necessária a presença da distração, seja da TV ou da vida virtual. Estamos nos tornando reféns da tecnologia que chegou para nos libertar da precariedade. Estamos sendo sequestrados sem que notemos, e nossa ruína é uma vida puramente insana. Como lidaremos, no futuro, com atividades que exigem longa prática e paciência? Como aprimoraremos nossa capacidade cognitiva, se hoje deixamos tudo nas mãos de um chip? São perguntas que deixo para reflexão.

 

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Política se faz no dia a dia

 

A partir de 2013, com as bombásticas manifestações que ocorreram país afora, as pessoas, especialmente os jovens, passaram a ser mais presentes no campo da política, e isso tem o lado bom e o lado negativo, como já afirmei em artigo passado. O lado bom resta evidente: a participação num assunto de interesse coletivo. O lado negativo, por outro lado, é que as coisas foram atropeladas. As pessoas, de um modo geral, que nunca tiveram interesse nesse tipo de assunto, ascenderam nele repentinamente, e raivosas. O “repentinamente” é ruim pelo fato de as pessoas terem embarcado numa onda massiva, sem com isso entenderem muito daquilo que replicavam, e o “raivosas” é ruim pelo fato de que política é a arte do diálogo, com prudência e com discernimento.

Se perguntarmos por aí o que é realmente direita e esquerda, certamente poucos saberão; se perguntarmos por aí o que é, de fato, fascismo, comunismo e nazismo, certamente poucos saberão; se perguntarmos por aí as diferenças objetivas entre os variados sistemas políticos existentes, certamente poucos saberão; se perguntarmos por aí a diferença entre sistema econômico liberal e conservador, certamente poucos saberão; se perguntarmos por aí a diferença entre socialismo utópico e socialismo científico, certamente poucos saberão. E são essas pessoas que estão nas redes sociais vociferando e dando discursos. É claro que todos têm o direito de se expressar, e o tema da política não é exclusividade de quem estuda, mas o cidadão faria muito bem conhecer sobre o tema que aborda.

Mas o pior de tudo não é isso, e agora chego ao ponto que gostaria. Política se faz no dia a dia, no corpo a corpo, no contato, na empatia, na prática cidadã, na luta..., política não deveria ser feita atrás de escudos, como celulares e computadores. Essa prática no dia a dia, sim, está ao alcance de todos, conhecendo ou não os conceitos políticos que mencionei acima. E quando me refiro às práticas do cotidiano, não me refiro a sair levantando bandeiras de partidos políticos pelas ruas ou gritando palavras de ordem. Para participar do bom funcionamento da coisa pública não é necessário subir em palanques partidários. Aquelas pessoas que estão no dia a dia dos trabalhos em prol de sua comunidade (e aqui utilizo o termo “comunidade” de forma ampla, e não como sinônimo de periferia, como erroneamente se faz por aí) fazem política; aquelas pessoas que fazem algum trabalho voluntário em alguma ONG fazem política; aquelas pessoas que dedicam algum tempo de sua vida a fazer algum trabalho social fazem política; aquelas pessoas que não aceitam práticas anticidadãs no dia a dia fazem política.

Já pensei eu, no passado, que ser um contribuinte como cidadão trabalhador era suficiente, e que já estaria fazendo, portanto, minha parte, uma vez que através desses impostos o governo promove a contrapartida aos munícipes. Mas eu estava errado. Pagar impostos corretamente não basta. É preciso lutar pelas melhorias públicas, estar a par e ser parte do andar da carruagem das decisões políticas que nos envolve, sejam elas na Câmara Municipal, na Assembleia Legislativa, no Congresso Nacional ou mesmo na direção do posto de saúde de seu bairro ou na escolha de conselhos gestores diversos.

Você, leitor, sabe ao menos o nome do subprefeito da região onde está seu distrito? Sabe o que é distrito? Sabe o nome do diretor da UBS de seu bairro? Já fez algo por sua comunidade? Já fez algo pelo próximo, sem ser dar esmola no farol, o que só aumenta a miséria? (Quem afirma sobre o aumento da miséria não sou eu, mas, entre outros, Malthus, Keynes e Dostoiévski.)

Pois bem, comece por aí. Faça política de verdade! Gritar na frente do computador é muito cômodo e não contribui em nada para a melhoria de seu bairro, menos ainda de seu distrito, menos ainda de seu município, menos ainda de seu Estado e muito menos de seu país. É fácil fazer propaganda de candidato A ou B e entrar em brigas e fazer inimizades, é fácil bater no peito e menosprezar a opinião alheia, mas no fim tudo isso não passa de promoção pessoal e de uma tentativa de se autoconvencer de que se está fazendo algo de bom. Não está!

terça-feira, 10 de novembro de 2020

A saúde pública municipal

 

Aqueles que não possuem convênio médico, e que, portanto, estão nas mãos do serviço público de saúde, precisam ficar atentos a alguns pontos. (Num próximo artigo posso dissertar um pouco sobre o mal que os convênios exercem sobre o SUS, com o aval, infelizmente, do próprio governo, e como os convênios são usados para furar filas de quem depende do serviço público.)

Pois bem, são dois pontos que quero ponderar, deixando claro de antemão, porém, a importância do SUS em nosso país:

1- A saúde pública municipal (e aqui me atento ao município pelo fato de estarmos diante de eleições municipais) é privatizada. Então de quem é a culpa do mau funcionamento do serviço público? Do governo ou do setor privado? Muitos candidatos, que se dizem liberais (talvez sem nunca na vida terem lido Keynes) difamam o Estado e exaltam a iniciativa privada, sem se dar conta de que esta já está incrustada na vida do cidadão. Essas entidades privadas não constroem nada em benefício do cidadão, elas pegam tudo pronto. Isto é, o governo cria, e as tais entidades apenas chegam e sentam na janela para administrar o que já está pronto, muito porcamente, diga-se de passagem. Não sou contra qualquer iniciativa privada, veja bem. Empresa é criada para ter lucro, apesar de nesse caso ser sobras, e não lucros, já que essas entidades teoricamente não possuem fins lucrativos. O que eu critico aqui então é a mistura público-privada, refiro-me aqui às associações de direito privado e ao governo que permite essa mistura deletéria.

Jamais deveria ser permitido misturar público e privado, e os governos comentem um erro fatal ao entregar um serviço que deveria ser de sua única incumbência a entidades privadas que parecem somente almejar ganhos – apesar de, repito, teoricamente serem sem fins lucrativos – em cima da vida do mais vulnerável. O governo com isso lava as mãos e assina sua própria incompetência administrativa. O candidato que entrou lá, entrou para administrar, mas ao invés de cumprir seu papel de administrador, terceiriza sua função. Nesse caso, ambos, o público e o privado, são culpados, portanto! Sem contar que o serviço privatizado sai muito mais caro para o bolso do contribuinte do que se fosse apenas público, apesar de alguns políticos – que provavelmente faltaram nas aulas de matemática do ensino básico – dizerem ser mais barato. Não é!

Todo candidato da oposição desses supostos liberais, por outro lado, sempre critica a entrega dos equipamentos públicos à mão dessas associações que nada constroem, mas, de outro modo, quando eventualmente assumem um mandato, nenhum deles extirpa essas OSs (organizações sociais) de vez do serviço público. É como criticar a reeleição, mas se valer dela ao estar no cargo. Hipocrisia! Percebe, leitor, como está tudo errado, tanto o modus operandi do serviço público, como os candidatos das mais variadas vertentes em sua exagerada demagogia eleitoral?

 2- Para se conseguir um agendamento com um médico no serviço público (que na verdade é privado), a pessoa leva um tempo que às vezes ela não tem. Veja o processo:

Se for com um especialista, ela não pode agendar diretamente com ele, mas precisa conseguir antes passar com um clínico geral. Para isso, essa pessoa precisa ir até uma UBS tentar o agendamento com o tal clínico, ao chegar lá, muito possivelmente ouvirá que a agenda dos clínicos já está preenchida, e que, portanto, ela precisa aguardar até a próxima abertura, que geralmente acontece uma vez por mês. A pessoa então tem de retornar à UBS na data sugerida, mas precisa chegar o mais cedo possível, uma vez que a agenda é preenchida em poucas horas, e depois só no mês seguinte de novo. (Claro que sempre é possível entrar na fila de espera de desistência, mas veja a humilhação.)  

Pois bem, se a pessoa der sorte e conseguir uma data com o clínico geral, não será para tão breve. Então no dia da consulta ela vai até o posto de saúde e passa com o médico, que aí sim lhe dará um encaminhamento (uma espécie de aval) para o tal especialista. O paciente então, com o encaminhamento em mãos, vai até uma sala apresentá-lo a uma pessoa responsável, que verá se há ou não vaga em alguma unidade de saúde da cidade (isto se não a mandarem diretamente até uma dessas unidades tentar a sorte diretamente). Se, porventura, e com sorte, houver uma vaga disponível, muito raramente será próximo de sua casa e numa data próxima.

Chegou o dia da consulta, o paciente vai até a unidade de saúde para sua consulta. O especialista possivelmente vai pedir um exame. O paciente pega o pedido, vai até a recepção e lá tenta a sorte de ter uma vaga para fazer o tal exame. Muito provavelmente não será perto de sua casa, nem para tão já. No dia do exame, ele o faz, mas o resultado só pegará dali a alguns bons dias. Com o resultado em mãos, enfim, ele precisa ainda marcar retorno com o especialista para que este o analise. Dali em diante pode ser tudo muito relativo.

Caro leitor, acompanhou a saga e a humilhação do paciente?

Para finalizar, eu deixo alguns pontos para análise, sem quaisquer acusações.  

1- No convênio médico, a pessoa consegue marcar consulta com um especialista com apenas um clique, possivelmente para o dia seguinte e bem próximo de sua casa. A vida é muito mais fácil, portanto. Questão: há alguém do setor privado incrustado no governo e boicotando o serviço público para obrigar as pessoas a assinarem com um convênio médico? A mesma pergunta serve para o setor da educação. E aqui todo mundo sabe a força do lobby.

2- As associações que assumem a tal terceirização pública dão um atendimento humilhante às pessoas de propósito para obrigá-las a procurar um serviço privado? Muitas vezes no consultório particular dos próprios médicos?

3- Os políticos, pessoal ou partidariamente, que entregam as pessoas na mão dessas entidades têm contrapartida dos responsáveis por elas?

4- Por que alguém iria querer pegar uma UBS para administrar, sabendo a encrenca que é lidar com saúde pública? Qual é o acordo sedutor feito entre as associações e o governo?

5- Quais são os termos obscuros nesses editais? Ou será só um aperto de mão?

6- Por que a saúde pública e seu atendimento nunca têm uma melhora significativa?

Se você notar, caro leitor, em todo debate de eleição municipal, a saúde é um assunto importante, e todos eles, de todas as vertentes ideológicas, acusam o oponente pelos maus serviços e prometem melhorar a saúde pública, das mais variadas formas possíveis. Um diz que vai tornar os postos de saúde 24 horas, o outro diz que vai zerar a fila de exame, o outro vai ampliar ou encerrar a parceria com o setor privado etc. Mas o ponto é que nunca nada avança substancialmente, e cada um deles quando precisa de um médico vai a hospitais privados caros, que, diga-se de passagem, também têm acordos grandes com o governo. Possivelmente, nenhum desses agentes públicos conhece a saúde pública de fato, e devem rir de nossa cara em seus domingos de sol na piscina de seus seguros condomínios.

E agora vem a pergunta final.

Quem é mais canalha nessa história toda?