Uma
leve neblina repousava sobre aquele domingo. O sol, sempre alegre, resistia em
presentear os corações, que àquela altura já estavam contaminados com o
semblante obscuro das nuvens.
A
caminho de uma casa de repouso destinada a idosos, uma jovem dirigia-se
reticente. Resplendor do Sol era como chamavam o espaço de acolhida, nome nada
condizente com aquele dia, mas diziam que assim era chamado em função da
intensa luminosidade solar que incidia diariamente sobre seu quintal.
Ao
chegar ao portão de entrada, notou que ele estava destrancado, e entrou. No
mesmo instante, uma empregada do lugar, ao perceber uma movimentação no entorno,
foi ao encontro da jovem para recebê-la.
–
Boa tarde, moça – disse com simplicidade a empregada.
Ambas
já se conheciam.
–
Boa tarde – respondeu a jovem, – minha mãe está bem?
–
Está, sim. Fique à vontade, ela está com os outros.
Dona
Lúcia residia na Replendor do Sol havia aproximadamente um ano, e desde então
sua filha, Tarsila Proença, visitava-a semanalmente. Já se habituara à condição
de sua mãe – que padecia de uma demência degenerativa –, apesar de sofrer em
seu íntimo em todas as visitas que fazia ao local. Tarsila inclusive já se
havia tornado amiga dos outros membros da casa, especialmente da alegre senhora
Branca e do cantador Ulisses, um pobre velhinho que, de sua cadeira de rodas,
vivia cantarolando melodias folclóricas.
Ao
entrar na sala principal da casa, Tarsila deparou-se com meia dúzia de
velhinhos reunidos. Alguns assistiam a um programa dominical pela TV; outros
cochilavam sentados; e outros, como dona Lúcia, olhavam para o nada, como se
apenas estivessem esperando o domingo e a vida passarem.
–
Mãe, tudo bem com a senhora? – perguntou carinhosamente Tarsila, após cumprimentar
os outros moradores.
Dona
Lúcia nada respondia. Sua demência, apontava a medicina, já estava num nível de
não reconhecer quem quer que fosse. Alguns dos idosos despertaram seus olhares
para Tarsila. Ao lado de dona Lúcia, uma senhora iniciou um pranto sutil e
abrupto, e foi ignorada por todos ao seu redor, até mesmo pelas empregadas da casa, que
decerto já estavam acostumadas com tais situações. O sofrimento que cada um
deles levava em seu âmago poderia ser para sempre uma infindável e impenetrável incógnita.
Nesse
momento, Tarsila desatou o nó que prendia dona Lúcia à cadeira para levá-la ao
lado de fora da casa. Queria conversar com sua mãe, fazê-la andar um pouco. Não
sabia há quanto tempo ela estava inerte naquele lugar. Lúcia, sem muita resistência
nem muita vontade apenas deu vazão ao destino e levantou-se para que ambas se sentassem
no quintal. À medida que andavam, o olhar curioso dos colegas ao lado deixava
nítida a vontade de cada um deles de também receber uma visita que fosse. Tarsila,
no entanto, era a única a estar ali.
Onde
estariam, pois, os filhos, os netos e os amigos dos outros velhinhos? Estariam no
conforto de seu lar? Estariam no parque com sua família? Estariam criando
coragem para abdicar de seu domingo e ir, com esforço, à casa de repouso? Era,
todavia, tudo um enigma.
Eleonora,
a cozinheira da casa, levou o almoço de dona Lúcia até o sofá no qual ela
estava com sua filha. “Não se preocupe, eu dou a comida a ela”, disse Tarsila.
Enquanto
mãe e filha compartilhavam da companhia uma da outra, a senhora Branca, que
acabara de despertar de um cochilo, foi até o quintal cumprimentar Tarsila
Proença.
–
Sente-se com a gente – convidou Tarsila.
–
Como está a senhorita? – perguntou a senhora Branca à medida que se sentava.
–
Tudo bem. E por aqui como estão as coisas?
–
Está tudo bem, minha filha. Muito obrigada – respondeu Branca com carinho de
mãe.
–
Há quanto tempo mesmo a senhora está aqui?
–
Estou há um ano e meio, minha jovem. Eu morava com meu filho, até que o maldito
câncer o levou de mim.
–
Sinto muito, senhora.
–
Nenhuma mãe deveria ver seu filho morrer – prosseguiu Branca –, mas eu sei que
ele está em boas mãos. Desde então estou neste lugar. Minha filha achou melhor que
eu me instalasse aqui, já que seria ruim eu continuar sozinha naquela casa
enorme.
Dona
Lúcia, nesse momento, começou a emitir alguns sons irreconhecíveis.
–
E sua mãe como está? – perguntou a senhora Branca ao ouvir Lúcia.
Tarsila
respirou fundo enquanto pensava por onde começaria, mas foi interceptada por
Branca, que certamente sentia falta de uma boa conversa.
–
Às vezes eu a pego chorando. Você acha que ela se lembra de algo? – perguntou a
doce senhora.
Tarsila teve seus olhos marejados. Eleonora,
da janela da cozinha, chamou pela senhora Branca:
–
Venha me ajudar, por favor, Branca.
–
A senhorita me dá licença – disse ela a Tarsila.
Tarsila
sabia que Eleonora apenas tinha chamado Branca para que ambas, mãe e filha,
ficassem a sós.
Enquanto
dona Lúcia continuava a emitir sílabas aleatórias, Tarsila abraçou-a intensamente. “Como você me faz falta”, disse a filha. “A senhora sabe que só está aqui
para sua própria segurança, não é, mãe?”
Apesar
de dona Lúcia não emitir qualquer reação ao carinho da filha, Tarsila sabia que
de alguma forma ela entendia tudo o que estava acontecendo; sabia, em sua alma,
que dona Lúcia tinha ciência das pessoas de sua vida, e que apenas era incapaz
de demonstrar seus sentimentos em virtude de sua doença, que a tomava paulatinamente.
“Como deve ser difícil, mãe, sentir e não conseguir demonstrar, e mundo afora tanta
gente sadia não o faz. Como deve ser difícil todo mundo
pensar que a senhora não entende das coisas, enquanto a senhora sabe de tudo o
que está acontecendo”, dizia Tarsila no ouvido da mãe. “É por isso que a
senhora chora?”, arrematava.
“Que
motivo uma pessoa, que já não possui mais perspectiva na vida, tem para continuar
seus dias? Que motivo uma pessoa nessas condições tem para ser feliz? Qual foi
o veneno que enfeitiçou sua alma e a tornou escrava deste mundo?”,
perguntava-se Tarsila, cedendo humanamente às suas fraquezas.
Eis
que uma melodia bastante agradável surgiu do fundo da casa. Seguramente vinha de
Ulisses, que, alegre, foi se aproximando com sua cadeira para tomar um ar após o
almoço. Enquanto dona Lúcia mantinha-se imóvel, Tarsila, enxugando os olhos,
sorriu diante da alegria de Ulisses, e foi tomada por um forte sentimento de
esperança.
Alguns momentos depois, ao
levar sua mãe para a sala de onde a tirou e despedir-se dela, Tarsila deixou o
cômodo sentindo-se mais leve. Notou ela que era o amor o grande responsável por
manter as pessoas neste mundo. O amor não pela vida em si, mas o amor pelos
seus. Ulisses era feliz porque, como os outros, levava consigo a esperança de
receber uma visita a qualquer momento, e cantava para expressar isso; a senhora
Branca tinha o consolo de um Deus misericordioso e o amor incondicional por sua
filha, além da doce memória de um filho que partiu; dona Lúcia, apesar de não
expressar convencionalmente o que quer que fosse, tinha um enorme sentimento
guardado dentro de si, e por isso era apanhada chorando eventualmente.
Antes
de sair da casa, Tarsila fez um cartaz e pendurou-o na parede que ficava de
frente para o portão de entrada para que outros parentes tivessem a clareza que
ela teve naquele momento. Nele dizia:
“A
vida que aqui subsiste é alimentada por um amor intenso e genuíno que cada um
dos velhinhos leva vivo em seu espírito. A vida que subsiste aqui é alimentada
pela esperança de ter os seus próximos de si. É o amor que mantém este lugar
vivo! É o amor que faz com que esses velhinhos mantenham sua sanidade, ainda
que ninguém acredite. É o resplendor do sol que os fazer querer continuar
vivos. Não abandone seus velhinhos!”
Tarsila
foi para casa com a dor ligeiramente atenuada, apesar do peso da alma, e
entendeu a razão do nome da pousada. Não é porque o sol incida em seu quintal,
mas é porque é através dele que ali se fomenta o doce néctar da vida.