terça-feira, 21 de agosto de 2018

A Ruína Linguística dos Compositores

Houve uma época em que as gravadoras tinham revisores linguísticos que estavam sempre atentos às letras das músicas dos artistas. Qualquer erro gramatical, a letra voltava para ser consertada. Não há sombra de dúvida de que o esculacho do português nas músicas nasceu a partir da Jovem Guarda, movimento cultural brasileiro surgido em meados dos anos de 1960, cujo maior expoente é nosso “rei”. Há ainda a necessidade de citar o nome?

De lá para cá a coisa só piorou, apesar de outros movimentos da mesma época, como o Tropicalismo, continuarem sendo cuidadosos com nosso idioma. Talvez o erro mais comum e que as pessoas não fazem a menor ideia de que o cometem seja o de uniformidade de tratamento, quando não há adequação entre o pronome e a pessoa gramatical que corresponde a ele. Um exemplo prático:

Diz pra mim (banda Malta):
Você está na sombra do olhar
Pensei em te guardar, mas foi melhor assim.


Conseguiu identificar o erro? Pois bem, “você” não concorda com “te”, já que o primeiro está relacionado à segunda pessoa indireta, na prática, terceira pessoa, e o segundo, à segunda pessoa.

Citei apenas um exemplo, neste caso uma banda de rock, mas isso atinge os compositores indiscriminadamente. Em outros gêneros, como o sertanejo universitário e o erroneamente chamado funk, os erros são ainda piores, contendo graves falhas de concordância, por exemplo. Eis aqui:

A culpa é dele (Marília Mendonça):
Se quem tava comigo era ele, a culpa é dele
Quem fez essa bagunça na nossa amizade é ele...

O que cê vai fazer (Fernando e Sorocaba):
As razões que me impedem
De estar com você vai além...


Jogo do Amor (Mc Bruninho):
E é com teu desprezo que eu vou te esquecer
Espera mais um pouco e tu vai ver...


Não se engane, tais desventuras estão também na nova MPB:

Trevo (Anavitória):
Tu é trevo de quatro folhas...

Este seria um assunto com discussões intermináveis. De onde provém tudo isso? É claro, se os jovens crescem escutando um português desse nível, certamente tenderão a escrever e a falar fora dos padrões da língua portuguesa, já que a influência midiática tem sido mais forte que a influência da escola. Por outro lado, esses compositores escrevem assim porque aprenderam assim. Percebeu o ciclo vicioso?

Nem entrei no mérito da essência dos textos das músicas como um todo, ainda que isso também tenha forte implicação no aprendizado do português. À medida que as letras contenham outros problemas, e mais difíceis de serem identificados, como coesão e coerência, e à medida que a linguagem descrita seja fútil e que os assuntos sejam banais, seus espectadores serão impedidos, a partir disso, de ler qualquer coisa que tenha um pouco mais de requinte linguístico, e os bons escritores que possam surgir sumirão de imediato.

Como alguém que só escuta Marília Mendonça, Fernando e Sorocaba e os mc’s da vida conseguirão ler uma obra de Graciliano Ramos, Machado de Assis e Mário de Andrade? Que cidadãos brasileiros formaremos sem essa base cultural?

Eis um dos males, dentre tantos pontos favoráveis, da democratização digital: as pessoas, sobretudo as de mais peso midiático, induzem tantos milhões a erros e à pobreza cultural, que não faz jus a um berço tão rico que o Brasil possui em sua história. Nem mesmo os professores de português, em grande parte, estão preparados a corrigir uma redação atualmente.

A independência dos artistas e seu livramento das condições engessadas do grande campo fonográfico foi sem dúvida uma conquista para sua liberdade, mas que falta nos faz seus bons revisores de português. Eles não consertariam uma educação em ruínas, mas impediriam que tantos milhões fossem afetados com letras tão mal escritas. O compositor de música popular não se dá conta de que precisa se dedicar tanto à escrita quanto à linha melódica. Hoje, porém, não se dedica nem a uma nem a outra.

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