terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Abdicação

Diante de uma realidade individualista e hedonista, características predominantes do ser humano na era pós-moderna, sacramentou-se a ideia do “ame-se acima de tudo!”. Essa foi a "fórmula mágica" encontrada para fugir de desilusões diversas. Atualmente, aconselhar o semelhante a sacrificar-se é uma espécie de crime.

Particularmente, não consigo imaginar o amor sem que haja um locutor e um interlocutor, isto é, não posso conceber a ideia do amor sem algo que forneça a possibilidade de reciprocidade. Amar a si próprio seria, portanto, além de uma impossibilidade clara, o absurdo do pedantismo e da soberba.

Relacionamentos têm sido cada vez mais frágeis, cada vez mais líquidos, cada vez mais vulneráveis, à medida que se aumenta a tese do “colocar-se a acima de qualquer coisa”. Para que qualquer espécie de relação tenha a menor chance de ocorrer satisfatoriamente, é necessário abstrair-se de presunção, é necessário sacrificar-se em prol do próximo, abdicar, muitas vezes, de seus desejos e de suas vontades. Isso não quer dizer que deva haver num relacionamento um servo e um senhor, mas a possibilidade de renúncia de todas as partes envolvidas. Também isso não quer dizer que num relacionamento sempre deverá valer a ideia do outro em detrimento da sua. É preciso tomar cuidado com os extremos.

Colocar-se sempre em primeiro lugar não significa ser mais feliz nem se livrar do famigerado “fazer papel de bobo”, mas, pelo contrário, colocar-se sempre em primeiro lugar apenas o tornará mais infeliz e com poucas chances de fazer qualquer relação funcionar perene e decentemente, tendo, à vista disso, um efeito contraproducente.

Quando Jesus alerta para o fato de “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22, 39), está indicando Ele empatia e compreensão, e não a arrogância que tomou o ser humano a partir dessa premissa. São Paulo nos indaga: “O que é que possuis que não tenhas recebido?”

“Ame-se!”, “coloque-se em primeiro lugar!” e “pense em você!” são conselhos perigosos, já que sempre quando vêm estão fechados em si. Livrar-se das algemas de relacionamentos possessivos e dependentes foram grandes conquistas para muita gente, mas é preciso sempre lembrar que um relacionamento não funciona quando cada um apenas pensa em seu próprio bem-estar, em seu próprio sucesso, e pensar dessa maneira apenas porque se vislumbra uma possível ruptura é trazer à vida ansiedade e sofrimento para si e para o próximo.

Mas como diria Antônio Abujamra, “a vida é sua, estrague-a como quiser”.

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